quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MARCAS INDELÉVEIS - 5º COLOCADO NO V CONCURSO NACIONAL DE CONTOS CIDADE DE LINS.

MARCAS INDELÉVEIS –  Rita de Cássia Zuim Lavoyer
Havia os bois que eram levados para os matadouros.  Dezenas passavam em frente à casa da minha infância, sendo tangidos por cavaleiros com roupas de couro: couro de bois! Traziam anéis de aços pendurados em suas narinas de onde vazava sangue que vinha juntar-se à espuma do canto de suas bocas. Eles bufavam enquanto marchavam unidos, desperdiçando seus olhares naquele trajeto indefinido.
Numa das passagens, senti que um deles, a par com um cavaleiro negro, de vestes negras, que o aguilhoava, me olhava e,  do portão de onde os assistia, eu o encarei. Era um boi todo preto. Ele virou a cabeça em minha direção para melhor me ver os olhos.   O seu olhar provocador atravessou-me. Transpus  o portão e postei-me  do lado de fora, encostada na cerca de balaústre. Senti, ainda que distante,  o fervor daquela  respiração avolumar-se em minha coluna,  paralisando-a, avermelhando a minha face e, em contraste,  gelando e empalidecendo os meus pés. 
Em minhas entranhas brotaram emoções que na minha vida de menina ainda não tinha experimentado em volume, temperatura e cor, tornando minha pulsação desordenada, o peito opresso e a angústia do significado daquele olhar me assaltando: – Por que me encarou? Acusar-me-ia de não impedir que uma possível crueldade fosse perpetrada?    Olhei-o do pescoço ao peito de onde também escorria-lhe o  sangue, desenhando o seu rastro vermelho no chão. Quem o havia ferido naquela parte?  Desci os meus olhos até as suas patas e com elas deixei ir o meu olhar até ao ponto em que consegui alcançar aquela marcha. O boi preto deixou-me claro que seu peso não era pouco: suficiente para saciar o desejo de muita fome.  A rua de terra vermelha mais vermelha ficou com aqueles sangues que avisavam sobre o iminente holocausto.  O sangue do boi preto figurava-se o mais pigmentado, eu senti! 
Quando todos passaram e a poeira baixou,  corri para calçar os meus pés nus nos rastros grandiosos que aquele boi sobranceiro e ensanguentado registrou na terra da minha rua, agasalhando-os.  Aquelas pegadas que eu calcei eram as dele. Identifiquei o seu sangue nelas, pois as tinha registrado em mim. Gravara no solo as suas marcas tal qual o seu proprietário tisnara a dele em sua anca.  Estaria, com esse gesto, inconscientemente afirmando que se eu pudesse tomaria a sua marcha forçada como minha?  Por que o fiz? Irrespondível?
Na minha ingenuidade, pus-me diariamente a esperar bois pretos no portão. Vieram novamente dezenas deles, de variadas cores,  apresentando os mesmos sofrimentos, sendo empurrados pelos mesmos tocadores  sobre os cavalos. Nem um, nem outro naquelas passagens encarou-me como aquele de outro dia. Foi único! Todos bufavam suas rusticidades, mas suas respirações automáticas não exalavam vontades para enrubescer as minhas bochechas alvas, tampouco desnudar-me os pés, substituindo as marcas daquele boi preto em mim. Encarou-me, todavia, um cavaleiro negro, de negra veste. Inexplicavelmente o meu peito arfou! Emoções me assaltaram e rubor e palidez se alternaram em minha pele.
O tempo passava à medida que passavam aquelas pegadas pregadas no chão, repetitivo... monótono... A cena do amontoado de dores nos cantos das bocas, as  fúrias adormecidas nos olhares -  estampando os recuos diante da luta -  eram as mesmas.  A seca do chão empoeirava as feridas das narinas dos animais, encobrindo aquela dor vermelha que delas escorria. Sempre o cavaleiro negro com seu olhar carregado de significações que eu, menina, não alcançava, me encarava. 
Num dia em que eu não era mais criança, para minha surpresa, somente um tocador conduzia a boiada. Abandonado, o portão estremecia pelo vento e pelo tropel. Estava só na janela. No parapeito, apoiava minha ansiedade, que se debruçara sobre mim desde a passagem daquela tropa que me assaltara na presença do boi preto. Há tanto tempo... Eu, moçoila, sentia ainda os meus pés calçados com a marca daquele  boi. Nunca mais nenhum boi olhara o meu olhar: desta vez somente o tocador virou-se para olhar-me, o mesmo olhar que me perseguia! O solitário condutor, o cavaleiro negro, deixou cair algo, um embrulho... 
 Eu, trôpega,  caminhei e rojei-me ao chão  para apanhá-lo, era um papel branco com muitas coisas escritas – um bilhete – envolvendo uma rosa vermelha que, sentindo o chão, se aconchegou num rachado  de terra sedenta de um pingo de sangue que fosse, para matar-lhe a vontade de continuar promovendo vida. Não havia pisados fundos naquele chão, por isso não calcei os meus pés em qualquer marca. Peguei a rosa e o bilhete e, ao abri-lo, vi que minhas mãos estavam sujas de terra vermelha, marcando-o.   No que o li, o meu olhar buscou ao longe o movimento do corpo daquele cavaleiro sobre o animal – notei não ser o mesmo cavalo sobre o qual montara durante o tempo em que os assistia da minha janela, mas era o mesmo tocador daquele boi preto. 
Aos acordes daquela marcha, galopei minha visão das suas costas à coxa e os meus olhos dançaram ao ritmo daquele cavalgar. No meio da rua fiquei esperando desaparecer – no horizonte onde o céu azul acasalava-se com a terra vermelha – a imagem que bailava,  destacando-se gloriosa naquele conjunto de martírios.
Parou! Ele parou! Olhou para trás, puxou a rédea e voltou lentamente. Percebi que o cavaleiro marchava ao meu encontro, trazendo na sua garupa sentidos que borbulhavam um vermelho transgressor nas minhas artérias, desorientando as vias de comunicação entre o meu corpo e a minha mente.  As batidas harmônicas daquele trotar  vibravam o meu chão, desconcertando-me os pés.
Corri, atravessei o portão, retornei e coloquei-me novamente no mesmo lugar da rua, escondendo atrás de mim as minhas mãos sujas.
 Ele apeou do animal – percebi que era uma fêmea muito bela.  O seu pelo branco trazia marcas das encilhadas. Suas pernas bem formadas mostravam-me músculos satisfeitos por aquela montaria.  Enquanto eu a apreciava, o cavaleiro me olhava.  Não disse nada. No primeiro passo que ele deu  à frente, com uma tijolada certeira, atingi-lhe o nariz. Seu sangue esguichou, respingou-me a blusa branca, transpassando o tecido, manchando o bilhete que guardara no seio. Tijolo e cavaleiro eu os vi tombando num mesmo instante. De quatro, o homem bufava preso ao chão,  enquanto o sangue que lhe escorria preenchia alguns vãos da terra rachada. Três horas da tarde havia de ser. Os raios do sol a pino azulavam daquele homem a sua pele negra.  A fervura da sua respiração ofegante queimava a minha face. Ele ergueu a cabeça para melhor me ver os olhos. Nossos olhares destemidos encontraram-se silenciosamente naquele ato de angústia. Por que nos encaramos?
 Num meio sorriso puxado para um dos cantos da boca, mostrando os lábios entreabertos, pude ver os seus dentes alvos avermelharem-se num instante. Provara do meu desejo de vê-lo tal qual aquele boi preto que um dia me assaltara.  A minha boca estava cheia e num de seus cantos escorria, límpida, minha saliva com a qual saciei minha sede daquela visão. O meu prazer absolveu-me daquela arbitrariedade.  Senti, pela segunda vez, a mesma sensação de quando o olhar provocador do boi atravessou-me. Apertei meu lábio entre os dentes, acalentando as forças que me queriam devorar.
Com postura altiva, a fêmea encarava-me. Ela abaixou a cabeça – ouvi, sentindo, sua respiração – para tocar o seu montador, deixando-me ver uma marca preta em seu dorso e a palavra “Moça” gravada na sela sobre a qual montava aquele homem.
Depois que se levantou e limpou seu sangue, que lhe escorria farto das narinas, disse-me:   – Volto amanhã, potranca.  
 – Não volte mais! – eu lhe ordenei.
Aquele cavaleiro negro não desistiu de obter o melhor de seu sonho. Voltou muitas vezes, entre as muitas, sem os bois, somente ele montado em sua Moça.
 Foi bravo aquele cavaleiro que avançou no roteiro a que estava destinado, não recuando diante da luta, tampouco das regras que o impediriam de seguir adiante. Éramos caças e caçadores. Com o tempo, ele abandonou as rédeas da minha selvageria e dois corpos tornaram-se um, aliançados pelo desejo de consumirmos um do outro as respirações, alimentando nossas carnes famintas de cavalgadas e confidências. 
Contou-me que aquele boi preto que me encarou morreu no matadouro – “como e por que”, igual a todos que eram levados para lá.
Quando as lembranças daquelas cenas me vinham, voltava àquele bilhete já amarelado pelo tempo, com letra caprichada do  cavaleiro e o lia. Minha boca se enchia, minhas bochechas ardiam e eu sentia o berro silencioso daquele boi preto figurar-se novamente nos meus pés. Então convidava o cavaleiro e, na garupa da Moça, meu esposo me levava para cavalgarmos até onde nossos sentidos nos permitiam.
 Sob um céu azulado, nossos corpos sentiam a relva e meus cabelos fluíam como véu de noiva à margem do riacho em que Moça matava sua sede. Discreta, andava pelo campo e prostrava-se à sombra do ambiente que desabrochava-se ímpar a cada estada dos nossos prazeres ali, sentindo a terra, a bem da terra e de nossos corpos. Depois saíamos à caça.
– Menina, ali! Mire... Agora!
Chamava-me de “Menina”, apesar de há muito ter deixado esta fase. Deitados, com o meu corpo sobre o seu dorso, ele emprestava-me a visão.  Quando ele me dizia “agora”, era somente apertar o gatilho que o tiro era certeiro.  Montávamos em Moça e retornávamos para, juntos, limparmos nossas presas e prepararmos nosso jantar. Aprendemos apreciar a caça. Éramos únicos no preparo das nossas refeições; ele, sem camisa, mostrava seus músculos revestidos por uma pele negra que me encantava. Deixávamos o tempo consumir-nos neste preparo e, afoitos, comíamos.
– Menina, ali! Mire... Agora!
Moça assustou-se e eu errei a alvo, nossa presa fugiu e outros animais que passavam por ali também. Estranhamos o comportamento da Moça, nunca antes se assustara com os tiros que disparamos. Voltamos para casa sem nenhuma caça que nos servisse de alimento.  Já atirava bem e, bem distante de onde adornávamos a relva, conhecemos outros campos que se nos exibiam fartos. Moça apresentava-se irrequieta e atrapalhava-nos os tiros. Íamos e voltávamos perdendo munições;  Moça não nos permitia sossego. Investimos em mais calibres. Então, num dia de desafio, meu cavaleiro resolveu amarrá-la a uma árvore, sem apertar o nó. Nem ele, nem eu a queríamos presa.
Estávamos nós dois com as nossas armas em punho. Disparei o meu tiro: errei. O meu cavaleiro fez o mesmo e nenhum animal caiu, servindo-nos de jantar. Silenciado o ambiente, abaixei-me, mirando um alvo suculento. Estava próximo a mim, não tinha como errar o tiro. O meu cavaleiro, ao meu lado, dava as coordenadas. Moça relinchava e escoiceava atrevida, apresentando-nos sua selvageria, rompendo com a árvore o nó de sua rédea. Sobre mim ela quis romper nossos laços de amizade. Meu cavaleiro postou-se entre nós duas e, sem entender o que fiz, da minha arma o projétil atingiu-lhe o peito. Eu o feri naquele lugar. Tombara ali, sobre mim, o meu cavaleiro.  Seu sangue jorrou e tive  minha blusa branca lavada de vermelho, desenhando sobre  mim o seu rastro.  Gravara-se em mim a sua marca tal qual um proprietário marca o seu animal.
Com postura altiva, Moça encarava-me e, de seus olhos, decifrei julgamentos, condenando-me de um crime que eu não quis cometer. Ela abaixou a cabeça, ouvi - sentindo o fervor da sua respiração – para tocar o seu montador.  Moça bufava enfurecida.  Estaria, com esse gesto, inconscientemente afirmando que se ela pudesse atribuiria a mim aquele ato como voluntário?  Por que o faria? Irrespondível...
Então, ele partiu: o meu Cavaleiro, para quem um nome melhor não houve: Cavaleiro. Lembrei-me de quando a “Moça” o conduziu para mim – instrumento da nossa marcha nupcial! Por causa daquele retorno que ambos fizeram a passos combinados, nós três seguimos em frente. Formávamos um triangulo de amizade, logo nossos sentimentos se nos refletiam.  Acabara, naquela caça amadora, entre mim e ela, a nossa cumplicidade. 
Os bois não vão mais para os matadouros tangidos por tocadores.  E os nossos anéis de ouro, do meu esposo e o meu, que nos ataram como em laço para seguirmos a par, eu os uni no dedo da minha mão esquerda, suja pela terra vermelha que vestirá para sempre aquele corpo negro gravado na minha anatomia.  Não pude impedir que a nossa separação fosse perpetrada. Agora, somente a terra o consumirá, sentindo o gosto da sua carne.
O bilhete! O meu, o nosso bilhete: cheio de revelações incandescentes à minha menina – aquela que o cavaleiro enxergou na moça que se queria mulher  quando esperava os bois passarem...  Lendo-o, embora se esfarelando, recupero aquele momento que me propiciou transformações. Ainda pulsa a mensagem que ele jogou naquela rua de terra seca, avermelhando a minha face que, até então, não a tinha visto rachada. Meu gentil Cavaleiro a preencheu durante o tempo em que estivemos juntos. Sem que eu percebesse, a sua completude alimentou-me desde o início da nossa história: aquele em que nos encaramos. Revi o que fora uma flor vermelha, hoje apenas pó, nada mais.
Quem corria para o portão – a minha menina-moça – para ver aquelas passagens de bois, degusta, neste instante, os farelos do bilhete amarelado pelo tempo, na intenção de que o sangue, que há anos fora respingado nele, me fortaleça para continuar a minha marcha.  Ele roça o céu da minha boca amadurecida e agasalha a minha língua de mulher, saciando os galopes dos meus sentimentos. Não há espuma e nada escorre da minha boca, por isso engulo as revelações marcadas naquele bilhete a seco. A minha menina-moça de pés calçados partiu com ele.
 Agora, calço-me os pés de mim mesma, assumindo minha rédea, tomando a marcha como minha, consciente de levar – até onde o meu olhar alcançar – o roteiro que agora é só meu,  como quem vai para o matadouro, mas sem recuar diante da luta sabendo, por ter aprendido com ele - meu Cavaleiro - desde quando nos encaramos - “como e por que” lutar:   marca registrada do meu Cavaleiro Negro em mim,  alimento do meu ser.
A Moça não me pode acompanhar.  Marcho  só, juntando meu olhar, definindo meu trajeto.

Autoria: Rita de Cássia Zuim Lavoyer , Araçatuba/novembro 2015.                                                   

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ritalavoyer@hotmail.com