MARCAS INDELÉVEIS – Rita de Cássia Zuim Lavoyer
Havia os bois que eram levados para os matadouros. Dezenas passavam em frente à casa da minha infância, sendo tangidos por
cavaleiros com roupas de couro:
couro de bois! Traziam anéis de aços
pendurados em suas narinas de onde vazava sangue que vinha juntar-se à
espuma do canto de suas bocas. Eles bufavam enquanto marchavam unidos,
desperdiçando seus olhares naquele trajeto indefinido.
Numa das passagens, senti que um deles, a par com um cavaleiro negro, de
vestes negras, que o aguilhoava, me olhava e, do portão de onde os assistia, eu o encarei.
Era um boi todo preto. Ele virou a cabeça em minha direção para melhor me ver
os olhos. O seu olhar provocador
atravessou-me. Transpus o portão e
postei-me do lado de fora,
encostada na cerca de balaústre. Senti, ainda que distante, o fervor daquela
respiração avolumar-se em minha
coluna, paralisando-a,
avermelhando a minha face e, em contraste, gelando e empalidecendo os meus pés.
Em minhas entranhas brotaram emoções que na minha vida de menina ainda não
tinha experimentado em volume, temperatura e cor, tornando minha pulsação
desordenada, o peito opresso e a angústia do significado daquele olhar me
assaltando: – Por que me encarou? Acusar-me-ia de não impedir que uma possível
crueldade fosse perpetrada? Olhei-o do pescoço ao peito de onde
também escorria-lhe o sangue,
desenhando o seu rastro vermelho no chão. Quem o havia ferido naquela
parte? Desci os meus olhos
até as suas patas e com elas deixei ir o meu olhar até ao ponto em que consegui
alcançar aquela marcha. O boi preto deixou-me claro que seu peso não era pouco:
suficiente para saciar o desejo de muita fome. A rua de terra vermelha mais vermelha
ficou com aqueles sangues que avisavam sobre o iminente holocausto. O sangue do boi preto figurava-se o mais
pigmentado, eu senti!
Quando todos passaram e a poeira baixou, corri para calçar os meus pés nus nos
rastros grandiosos que aquele boi sobranceiro e ensanguentado registrou na
terra da minha rua, agasalhando-os. Aquelas
pegadas que eu calcei eram as dele. Identifiquei o seu sangue nelas, pois as
tinha registrado em mim. Gravara no solo as suas marcas tal qual o seu proprietário
tisnara a dele em sua anca. Estaria,
com esse gesto, inconscientemente afirmando que se eu pudesse tomaria a sua
marcha forçada como minha? Por
que o fiz? Irrespondível?
Na minha ingenuidade, pus-me diariamente a esperar bois pretos
no portão. Vieram novamente dezenas deles, de variadas cores, apresentando os mesmos sofrimentos, sendo
empurrados pelos mesmos tocadores sobre
os cavalos. Nem um, nem outro naquelas passagens encarou-me como aquele de
outro dia. Foi único! Todos bufavam suas rusticidades, mas suas respirações
automáticas não exalavam vontades para enrubescer as minhas bochechas alvas,
tampouco desnudar-me os pés, substituindo as marcas daquele boi preto em mim. Encarou-me, todavia, um cavaleiro
negro, de negra veste. Inexplicavelmente o meu peito arfou! Emoções me
assaltaram e rubor e palidez se alternaram em minha pele.
O tempo passava à medida que passavam aquelas pegadas
pregadas no chão, repetitivo... monótono... A cena do amontoado de dores
nos cantos das bocas, as fúrias
adormecidas nos olhares - estampando
os recuos diante da luta - eram
as mesmas. A seca do chão
empoeirava as feridas das narinas dos animais, encobrindo aquela dor vermelha
que delas escorria. Sempre o
cavaleiro negro com seu olhar carregado de significações que eu, menina, não
alcançava, me encarava.
Num dia em que eu não era mais criança, para minha surpresa,
somente um tocador conduzia a boiada. Abandonado, o portão estremecia pelo
vento e pelo tropel. Estava só na
janela. No parapeito, apoiava minha ansiedade, que se debruçara
sobre mim desde a passagem daquela tropa que me assaltara na presença do boi
preto. Há tanto tempo... Eu, moçoila,
sentia ainda os meus pés calçados com a marca daquele boi. Nunca mais nenhum boi olhara o
meu olhar: desta vez somente o tocador virou-se para olhar-me, o mesmo olhar que me perseguia! O
solitário condutor, o cavaleiro negro, deixou cair algo, um embrulho...
Eu, trôpega, caminhei e rojei-me ao chão para apanhá-lo, era um papel
branco com muitas coisas escritas – um bilhete – envolvendo uma rosa
vermelha que, sentindo o chão, se aconchegou num rachado de terra sedenta de um pingo de
sangue que fosse, para matar-lhe a vontade de continuar promovendo vida.
Não havia pisados fundos naquele chão, por isso não calcei os meus pés em
qualquer marca. Peguei a rosa e o bilhete e, ao abri-lo, vi que minhas mãos
estavam sujas de terra vermelha, marcando-o. No que o li, o meu olhar buscou ao
longe o movimento do corpo daquele cavaleiro sobre o animal – notei não ser o
mesmo cavalo sobre o qual montara durante o tempo em que os assistia da minha
janela, mas era o mesmo tocador daquele boi preto.
Aos acordes daquela marcha, galopei
minha visão das suas costas à coxa e os meus olhos dançaram ao ritmo daquele
cavalgar. No meio da rua fiquei esperando desaparecer – no horizonte onde o céu
azul acasalava-se com a terra vermelha – a imagem que bailava, destacando-se gloriosa naquele
conjunto de martírios.
Parou! Ele parou! Olhou para trás, puxou a rédea e voltou
lentamente. Percebi que o cavaleiro marchava ao meu encontro, trazendo na sua
garupa sentidos que borbulhavam um vermelho transgressor nas minhas artérias,
desorientando as vias de comunicação entre o meu corpo e a minha mente. As batidas harmônicas daquele
trotar vibravam o meu chão,
desconcertando-me os pés.
Corri, atravessei o portão, retornei e coloquei-me novamente
no mesmo lugar da rua, escondendo atrás de mim as minhas mãos sujas.
Ele apeou
do animal – percebi que era uma fêmea muito bela. O seu pelo branco trazia marcas das
encilhadas. Suas pernas bem formadas mostravam-me músculos satisfeitos por
aquela montaria. Enquanto
eu a apreciava, o cavaleiro me olhava. Não disse nada. No primeiro passo que ele deu à frente, com uma tijolada certeira,
atingi-lhe o nariz. Seu sangue esguichou, respingou-me a blusa branca,
transpassando o tecido, manchando o bilhete que guardara no seio. Tijolo e
cavaleiro eu os vi tombando num mesmo instante. De quatro, o homem bufava preso
ao chão, enquanto o sangue que lhe escorria preenchia alguns vãos da
terra rachada. Três horas da tarde havia de ser. Os raios do sol a pino
azulavam daquele homem a sua pele negra. A fervura da sua respiração
ofegante queimava a minha face. Ele ergueu a cabeça para melhor me ver os
olhos. Nossos olhares destemidos encontraram-se silenciosamente naquele ato de
angústia. Por que nos encaramos?
Num meio sorriso puxado para um dos cantos da boca,
mostrando os lábios entreabertos, pude ver os seus dentes alvos avermelharem-se
num instante. Provara do meu desejo de vê-lo tal qual aquele boi preto que um
dia me assaltara. A minha boca estava
cheia e num de seus cantos escorria, límpida, minha saliva com a qual saciei
minha sede daquela visão. O meu prazer absolveu-me daquela arbitrariedade. Senti, pela segunda vez, a mesma sensação de
quando o olhar provocador do boi atravessou-me. Apertei meu lábio entre os
dentes, acalentando as forças que me queriam devorar.
Com postura altiva, a fêmea encarava-me. Ela abaixou a cabeça
– ouvi, sentindo, sua respiração – para tocar o seu montador, deixando-me ver
uma marca preta em seu dorso e a palavra “Moça” gravada na sela sobre a qual
montava aquele homem.
Depois que se levantou e limpou seu sangue, que lhe escorria
farto das narinas, disse-me: – Volto
amanhã, potranca.
– Não
volte mais! – eu lhe ordenei.
Aquele cavaleiro negro não desistiu de obter o melhor de seu
sonho. Voltou muitas vezes, entre as muitas, sem os bois, somente ele montado
em sua Moça.
Foi bravo aquele cavaleiro que avançou no roteiro a que
estava destinado, não recuando diante da luta, tampouco das regras que o
impediriam de seguir adiante. Éramos caças e caçadores. Com o tempo, ele
abandonou as rédeas da minha selvageria e dois corpos tornaram-se um,
aliançados pelo desejo de consumirmos um do outro as respirações, alimentando
nossas carnes famintas de cavalgadas e confidências.
Contou-me que aquele boi preto que me encarou morreu no
matadouro – “como e por que”, igual a todos que eram levados para lá.
Quando as lembranças daquelas cenas me vinham, voltava àquele
bilhete já amarelado pelo tempo, com letra caprichada do cavaleiro e o lia. Minha boca se
enchia, minhas bochechas ardiam e eu sentia o berro silencioso daquele boi
preto figurar-se novamente nos meus pés. Então convidava o cavaleiro e, na
garupa da Moça, meu esposo me levava para cavalgarmos até onde nossos sentidos
nos permitiam.
Sob um céu azulado, nossos corpos sentiam a relva e
meus cabelos fluíam como véu de noiva à margem do riacho em que Moça matava sua
sede. Discreta, andava pelo campo e prostrava-se à sombra do ambiente que
desabrochava-se ímpar a cada estada dos nossos prazeres ali, sentindo a terra,
a bem da terra e de nossos corpos. Depois saíamos à caça.
– Menina, ali! Mire... Agora!
Chamava-me de “Menina”, apesar de há muito ter deixado esta
fase. Deitados, com o meu corpo sobre o seu dorso, ele emprestava-me a
visão. Quando ele me dizia
“agora”, era somente apertar o gatilho que o tiro era certeiro. Montávamos em Moça e retornávamos
para, juntos, limparmos nossas presas e prepararmos nosso jantar. Aprendemos
apreciar a caça. Éramos únicos no preparo das nossas refeições; ele, sem
camisa, mostrava seus músculos revestidos por uma pele negra que me encantava. Deixávamos o tempo consumir-nos neste
preparo e, afoitos, comíamos.
– Menina, ali! Mire... Agora!
Moça assustou-se e eu errei a alvo, nossa presa fugiu e
outros animais que passavam por ali também. Estranhamos o comportamento da
Moça, nunca antes se assustara com os tiros que disparamos. Voltamos para casa
sem nenhuma caça que nos servisse de alimento. Já atirava bem e, bem distante de
onde adornávamos a relva, conhecemos outros campos que se nos exibiam fartos.
Moça apresentava-se irrequieta e atrapalhava-nos os tiros. Íamos e voltávamos
perdendo munições; Moça não nos permitia
sossego. Investimos em mais calibres. Então, num dia de desafio, meu cavaleiro
resolveu amarrá-la a uma árvore, sem apertar o nó. Nem ele, nem eu a queríamos
presa.
Estávamos nós dois com as nossas armas em punho. Disparei o
meu tiro: errei. O meu cavaleiro fez o mesmo e nenhum animal caiu, servindo-nos
de jantar. Silenciado o ambiente, abaixei-me, mirando um alvo suculento. Estava
próximo a mim, não tinha como errar o tiro. O meu cavaleiro, ao meu lado, dava
as coordenadas. Moça relinchava e escoiceava atrevida, apresentando-nos sua
selvageria, rompendo com a árvore o nó de sua rédea. Sobre mim ela quis romper
nossos laços de amizade. Meu cavaleiro postou-se entre nós duas e, sem entender
o que fiz, da minha arma o projétil atingiu-lhe o peito. Eu o feri naquele
lugar. Tombara ali, sobre mim, o meu cavaleiro. Seu sangue jorrou e tive minha blusa branca lavada de vermelho,
desenhando sobre mim o seu
rastro. Gravara-se em mim a
sua marca tal qual um proprietário marca o seu animal.
Com postura altiva, Moça encarava-me e, de seus olhos,
decifrei julgamentos, condenando-me de um crime que eu não quis cometer. Ela
abaixou a cabeça, ouvi - sentindo o fervor da sua respiração – para tocar o seu
montador. Moça bufava enfurecida. Estaria,
com esse gesto, inconscientemente afirmando que se ela pudesse atribuiria a mim aquele ato como voluntário? Por que o faria? Irrespondível...
Então, ele
partiu: o meu Cavaleiro, para quem um nome melhor não houve: Cavaleiro.
Lembrei-me de quando a “Moça” o
conduziu para mim – instrumento da nossa marcha nupcial! Por causa daquele
retorno que ambos fizeram a passos combinados, nós três seguimos em frente.
Formávamos um triangulo de amizade, logo nossos sentimentos se nos
refletiam. Acabara, naquela
caça amadora, entre mim e ela, a nossa cumplicidade.
Os bois não vão mais para os matadouros tangidos por
tocadores. E os nossos anéis de ouro, do
meu esposo e o meu, que nos ataram como em laço para seguirmos a par, eu os uni
no dedo da minha mão esquerda, suja pela terra vermelha que vestirá para sempre
aquele corpo negro gravado na minha anatomia. Não pude impedir que a nossa separação
fosse perpetrada. Agora, somente a terra o consumirá, sentindo o gosto da sua
carne.
O bilhete! O meu, o nosso bilhete: cheio de revelações
incandescentes à minha menina – aquela que o cavaleiro enxergou na moça que se
queria mulher quando
esperava os bois passarem... Lendo-o,
embora se esfarelando, recupero aquele momento que me propiciou transformações.
Ainda pulsa a mensagem que ele jogou naquela rua de terra seca, avermelhando a
minha face que, até então, não a tinha visto rachada. Meu gentil Cavaleiro a
preencheu durante o tempo em que estivemos juntos. Sem que eu percebesse, a sua
completude alimentou-me desde o início da nossa história: aquele em que nos
encaramos. Revi o que fora uma flor vermelha, hoje apenas pó, nada mais.
Quem corria para o portão – a minha menina-moça – para ver
aquelas passagens de bois, degusta, neste instante, os farelos do bilhete
amarelado pelo tempo, na intenção de que o sangue, que há anos fora respingado
nele, me fortaleça para continuar a minha marcha. Ele roça o céu da minha boca
amadurecida e agasalha a minha língua de mulher, saciando os galopes dos meus
sentimentos. Não há espuma e nada escorre da minha boca, por isso engulo
as revelações marcadas naquele bilhete a seco. A minha menina-moça de pés
calçados partiu com ele.
Agora, calço-me os pés de mim mesma, assumindo minha
rédea, tomando a marcha como minha, consciente de levar – até onde o meu olhar
alcançar – o roteiro que agora é só meu, como quem vai para o matadouro, mas
sem recuar diante da luta sabendo, por ter aprendido com ele - meu Cavaleiro - desde
quando nos encaramos - “como e por que” lutar: marca registrada do meu Cavaleiro
Negro em mim, alimento do
meu ser.
A
Moça não me pode acompanhar. Marcho
só, juntando meu olhar, definindo meu
trajeto.
Autoria: Rita de Cássia Zuim Lavoyer , Araçatuba/novembro 2015.
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